Mazza Advocacia

Licitação de auxílio-alimentação e monopólio das MEs e EPPs

Como procedimento administrativo competitivo, na licitação pode ocorrer empate entre as propostas. Daí a necessidade de a legislação, e somente ela, definir critérios de desempate. Descabe à Administração, por ato próprio, decidir como dar-se-á o desempate, sob pena de violarem-se os princípios da legalidade e da impessoalidade.

            Na moribunda Lei 8.666/93, os sucessivos critérios de desempate estão prescritos no artigo 3º, § 2º[1]. Persistindo o empate, ainda segundo a mesma Lei, a comissão deve promover sorteio “em ato público, para o qual todos os licitantes serão convocados, vedado qualquer outro processo” (art. 45, § 2º, original sem destaque).

            Já na nova Lei de Licitações, a 14.133/21, o sistema de desempate é significativamente mais complexo, e consta do art. 60[2]. O novel diploma licitatório, entretanto, é silente quanto ao que deve ser feito na hipótese de manter-se o empate após a utilização de todos os critérios legais.

            Cabe esclarecer, nesse passo, que os citados dispositivos, nas duas leis gerais licitatórias, dizem respeito à hipótese de empate real, ou seja, quando os proponentes apresentam propostas aritmeticamente idênticas.

Não se deve confundir empate real com o empate ficto, sendo este previsto e disciplinado pelos artigos 44 e 45 do Estatuto das Microempresas (MEs) e Empresas de Pequeno Porte (EPPs) – Lei Complementar 123/06. 

Tratamento favorecido a Microempresas e Empresas de Pequeno Porte

            A Constituição de 1988 em três dispositivos diferentes determina que o legislador crie mecanismos de tratamento favorecido às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte: arts. 146, III, “d”, 170, IX e 179.

Atendendo ao comando constitucional, na seara licitatória os artigos 44 e 45 da Lei Complementar 123/06 criaram a sistemática do denominado “empate ficto”. Em apertada síntese, o art. 44 define como critério de desempate na licitação a preferência de contratação em favor das microempresas e empresas de pequeno porte. Ao passo que o art. 45 estabelece o procedimento pelo qual o desempate se dará.

            Importante salientar que o § 1º do artigo 44 definiu com clareza o que deve ser considerado como empate ficto, a saber: “aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada”, oportunizando-se então uma segunda chance para que a ME ou EPP melhor classificada ofereça nova proposta inferior à mais baixa até então apurada no certame.

            Note-se que não existe uma preferência apriorística a empresas enquadradas como MEs e EPPs que lhes garanta uma permanente posição de vantagem sobre os demais licitantes. Há, isso sim, uma nova oportunidade para a ME e EPP mais bem classificada cobrir o preço até então líder da disputa.

            A preocupação do legislador, nesse ponto, foi compatibilizar o tratamento favorecido com a necessária vantajosidade para a Administração na celebração do contrato.

            O empate ficto, assim, é um artifício jurídico que equipara ofertas desiguais.

Da peculiar condição das licitações para contratar auxílio-alimentação

            Nas licitações para contratar os serviços especializados de administração, gerenciamento e fornecimento de auxílio-alimentação existem algumas peculiaridades que impactam diretamente nas regras do procedimento.

            Inicialmente, vale lembrar que o critério de julgamento previsto nas licitações de auxílio-alimentação é o menor preço global por lote, incluindo a taxa de administração do cartão magnético ou tecnologia similar. É de praxe que nesses certames a diferença entre as propostas esteja no maior ou menor deságio na taxa de administração.

Ocorre que o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo proibiu a oferta de taxa de administração negativa nas licitações paulistas do setor, razão pela qual o valor mínimo está limitado a zero (TC-010031989.22-1).

            Recentemente, a Lei 14.442/22 também passou a vedar taxativamente qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos na contratação de auxílio-alimentação (art. 3º, I).

            Desse modo, as ofertas apresentadas pelos licitantes tendem ao zero. Na verdade, é frequente um cenário classificatório nas licitações de auxílio-alimentação em que a maioria das propostas, se não todas, tenha empate real em zero, tanto das MEs e EPPs, quanto das demais licitantes.

            Tal circunstância impõe aos agentes de contratação a aplicação dos critérios legais de desempate prescritos pelos artigos 3º, § 2º, da Lei 8666/93 e 60 da Lei 14.133/21, sendo impossível exigir que os competidores melhorem suas propostas face a vedação de ofertas negativas determinada pelo TCE/SP e pela Lei 14.442/22.

            Nesse cenário, fica prejudicada a fase final do certame em que a ME ou EPP melhor classificada poderia oferecer lance inferior àquele até então mais baixo apurado, tal como previsto na LC 123/06.

Do sorteio de desempate e do monopólio das MEs e EPPs

            Sendo inaplicável a sistemática de superação do empate ficto nas licitações com empate real entre diversos licitantes, a única solução compatível com os princípios da legalidade e impessoalidade consiste na realização de sorteio entre todos os disputantes empatados, solução amparada pelo já citado artigo 45, § 2º, da Lei 8.666/93, realizando-se “em ato público, para o qual todos os licitantes serão convocados, vedado qualquer outro processo” (original sem destaque).

            Ocorre que algumas comissões licitantes têm promovido o sorteio de desempate somente entre MEs e EPPs. Trata-se prática inaceitável porque, sobre violar o artigo 45, § 2º, da Lei 8.666/93, cria um monopólio no fornecimento de auxílio-alimentação em favor das MEs e EPPs, situação que não se enquadra nas hipóteses de monopólio autorizados pelo art. 177 da Constituição Federal.[3] Ademais, impedir a participação de empresas médias e grandes no sorteio final viola os princípios constitucionais da isonomia, legalidade, eficiência e livre concorrência. Realizando-se o sorteio somente entre MEs e EPPs, nunca mais uma licitação para fornecimento de auxílio-alimentação será vencida por empresas médias ou grandes!

Das desvantagens para a Administração em realizar o sorteio somente entre MEs e EPPs

            Além da violação aos princípios acima elencados, excluir arbitrariamente as médias e grandes empresas do sorteio para decretação do vencedor do certame, e com isso impedir tais empresas de participar de todas as licitações no setor, além de não encontrar amparo no ordenamento jurídico, revela-se ainda uma medida desvantajosa para a Administração e para os beneficiários do auxílio-alimentação.

De início, é evidente que realizar o sorteio de desempate somente entre MEs e EPPs restringe a competitividade da disputa e, como consequência, a busca pela melhor proposta não só para a Administração, como também para os beneficiários do auxílio-alimentação.

Isso porque empresas maiores, entre outras vantagens, apresentam:

  1. Rede credenciada maior do que as MEs e EPPs, o que é claramente melhor para o beneficiário do auxílio-alimentação;
  2. Capital social mais robusto, minimizando a chance de inadimplemento;
  3. Menor chance de insolvência financeira, o que reduz o risco de o Poder Público ser responsabilizado subsidiariamente por prejuízos decorrentes da quebra da empresa;
  4. Suporte administrativo e quadro de funcionários melhor estruturados.

Não por outra razão, a legislação pátria permite expressamente afastar o tratamento favorecido a MEs e EPPs quando não houver interesse para a Administração. É o que prescreve o art. 49, III, da LC 123/06, segundo o qual não se aplica o tratamento diferenciado e simplificado para as MEs e EPPs “se não for vantajoso para a administração pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado”.

Conclusão

            Diante do exposto, impõe-se concluir que havendo empate real entre empresas participantes da licitação para fornecimento de auxílio-alimentação, a autoridade deve promover sorteio entre todos os licitantes empatados, e não somente entre MEs e EPPs.

ALEXANDRE MAZZA. Pós-Doutor pelas Universidades de Coimbra (Portugal) e Salamanca (Espanha). Advogado e parecerista em São Paulo. Contato: alexandre.mazza@uol.com.br


[1] Art. 3º § 2o  “Em igualdade de condições, como critério de desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços: I – (revogado) II – produzidos no País; III – produzidos ou prestados por empresas brasileiras; IV – produzidos ou prestados por empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País. V – produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação”.   

[2] “Art. 60. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: I – disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; II – avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes, para a qual deverão preferencialmente ser utilizados registros cadastrais para efeito de atesto de cumprimento de obrigações previstos nesta Lei; III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento;     IV – desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle. § 1º Em igualdade de condições, se não houver desempate, será assegurada preferência, sucessivamente, aos bens e serviços produzidos ou prestados por: I – empresas estabelecidas no território do Estado ou do Distrito Federal do órgão ou entidade da Administração Pública estadual ou distrital licitante ou, no caso de licitação realizada por órgão ou entidade de Município, no território do Estado em que este se localize; II – empresas brasileiras; III – empresas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia no País; IV – empresas que comprovem a prática de mitigação, nos termos da Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de 2009”.

[3] “Art. 177. Constituem monopólio da União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;  II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III – a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V – a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal”.    

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